Se você está envolvido em pesquisas qualitativas, já deve ter ouvido falar da Teoria Fundamentada (Grounded Theory – GT), uma das metodologias mais influentes e sistemáticas para análise de dados qualitativos. Desenvolvida na década de 1960 por Barney Glaser e Anselm Strauss, essa abordagem permite que o pesquisador construa teorias a partir dos dados coletados, em vez de testar hipóteses pré-existentes.
Neste post, vamos explorar:
- O que é a Teoria Fundamentada?
- Princípios básicos e características
- As diferentes abordagens (Glaser, Strauss & Corbin, Charmaz)
- Etapas do processo de pesquisa
- Vantagens e críticas
- Exemplo prático de aplicação
1. O que é a Teoria Fundamentada?
A Teoria Fundamentada (Grounded Theory) é um método de pesquisa qualitativa que visa gerar teorias a partir da análise sistemática de dados empíricos. Diferente de outras abordagens que partem de um referencial teórico prévio, a GT permite que a teoria “emerja” dos dados coletados, sendo “fundamentada” (grounded) na realidade observada.
Ela é amplamente utilizada em áreas como:
- Sociologia
- Psicologia
- Administração
- Saúde
- Educação
2. Princípios Básicos e Características
A GT possui algumas características essenciais:
✔ Indução Analítica: A teoria é construída a partir dos dados, não de suposições prévias.
✔ Amostragem Teórica: Os participantes são selecionados com base nas necessidades da teoria em desenvolvimento.
✔ Comparação Constante: Dados são constantemente comparados para identificar padrões e categorias.
✔ Saturação Teórica: A coleta de dados para quando novas informações não trazem insights relevantes.
✔ Codificação Aberta, Axial e Seletiva: Processo sistemático de análise dos dados.
3. Abordagens da Teoria Fundamentada
Existem diferentes correntes dentro da GT, cada uma com suas particularidades:
a) Glaser (Abordagem Clássica)
- Foco na emergência natural da teoria.
- Evita imposição de estruturas rígidas.
- Menos prescritiva em relação a etapas.
b) Strauss & Corbin (Abordagem Estrutural)
- Propõe um método mais sistemático e detalhado.
- Introduz a codificação axial e o paradigma de condições, ações e consequências.
- Críticos argumentam que pode forçar demais os dados em categorias pré-definidas.
c) Charmaz (Abordagem Construtivista)
- Incorpora perspectivas pós-modernas e interpretativas.
- Reconhece que a teoria é construída pelo pesquisador, não apenas “descoberta”.
- Ênfase na subjetividade e contexto.
4. Etapas da Pesquisa em Teoria Fundamentada
A Teoria Fundamentada é um processo iterativo e sistemático, no qual a coleta e a análise de dados ocorrem em paralelo. Abaixo, detalhamos cada etapa com exemplos práticos para facilitar sua aplicação:

4.1. Coleta de Dados Iniciais
- Objetivo: Obter informações ricas e relevantes sobre o fenômeno estudado.
- Fontes comuns:
- Entrevistas semiestruturadas
- Observação participante
- Documentos (diários, registros institucionais)
- Grupos focais
- Exemplo: Se o tema for “Como professores universitários lidam com a frustração em sala de aula?”, as primeiras entrevistas podem explorar experiências emocionais e estratégias de enfrentamento.
🔹 Dica: Comece com uma amostra pequena e diversificada (5-10 participantes) e expanda conforme surgem novas categorias (amostragem teórica).
4.2. Codificação Aberta (Open Coding)
- Objetivo: Quebrar os dados em unidades significativas e identificar conceitos emergentes.
- Processo:
- Fragmentação: Ler os dados linha por linha, destacando palavras/frases-chave.
- Rotulação: Atribuir códigos descritivos a cada trecho relevante.
- Agrupamento: Consolidar códigos similares em categorias preliminares.
- Exemplo:
- Trecho da entrevista: “Sinto que os alunos não se importam com a aula… às vezes penso em desistir.”
- Códigos possíveis:
- “Desmotivação docente”
- “Percepção de desinteresse discente”
- “Pensamentos de abandono”
🔹 Dica: Use software como NVivo ou Atlas.ti para organizar os códigos, mas evite automatizar demais — a reflexão crítica é essencial.
4.3. Codificação Axial (Axial Coding) (Strauss & Corbin)
- Objetivo: Relacionar categorias e subcategorias para formar um modelo coerente.
- Estrutura do Paradigma:
- Fenômeno Central: O conceito principal que emerge (ex.: “Frustração docente”).
- Condições Causais: Fatores que influenciam o fenômeno (ex.: “Turmas grandes”, “Falta de recursos”).
- Estratégias/Ações: Como os participantes respondem (ex.: “Busca por formação pedagógica”).
- Consequências: Resultados das ações (ex.: “Melhora na autoeficácia”).
Exemplo prático:
Fenômeno: "Frustração em sala de aula"
│
├─ Condições Causais:
│ ├─ "Alunos despreparados"
│ └─ "Cobrança institucional"
│
├─ Estratégias:
│ ├─ "Adaptação didática"
│ └─ "Suporte entre colegas"
│
└─ Consequências:
├─ "Redução do estresse"
└─ "Renovação da motivação"
🔹 Dica: Diagramas ou matrizes ajudam a visualizar relações entre categorias.
4.4. Codificação Seletiva (Selective Coding)
- Objetivo: Integrar todas as categorias em uma narrativa teórica unificada.
- Processo:
- Identificar a categoria central (o “cerne” da teoria).
- Refinar as conexões com outras categorias.
- Escrever uma história teórica que explique o fenômeno.
- Exemplo:
- Categoria Central: “Ciclo de frustração e resiliência docente”
- Narrativa: “Professores experienciam frustração devido a condições adversas (X), adotam estratégias individuais e coletivas (Y), levando a consequências positivas ou negativas (Z).”
4.5. Saturação Teórica
- Critério de Parada: Novos dados não acrescentam insights relevantes às categorias já estabelecidas.
- Como avaliar:
- Após ~15-20 entrevistas (varia por estudo), verifique se:
- Novos participantes repetem padrões já identificados.
- Nenhuma categoria nova surge.
- Após ~15-20 entrevistas (varia por estudo), verifique se:
🔹 Dica: Registre decisões metodológicas em um diário de pesquisa para garantir transparência.
4.6. Redação da Teoria
- Formato: Pode ser um modelo visual (diagrama) ou texto descritivo.
- Elementos-chave:
- Contexto do fenômeno.
- Relações entre categorias.
- Implicações práticas/teóricas.
- Exemplo de Saída:“A teoria emergente sugere que a frustração docente é um processo dinâmico, mediado por fatores institucionais e estratégias de coping, com impactos diretos na saúde mental e na prática pedagógica.”
4.7. Comparativo entre Tipos de Codificação
Etapa | Foco | Ferramentas Úteis | Resultado Esperado |
---|---|---|---|
Aberta | Conceitos iniciais | Anotações, post-its | Lista de códigos/categorias |
Axial | Relações entre categorias | Matrizes, diagramas | Modelo com condições/ações |
Seletiva | Integração teórica | Narrativa escrita | Teoria fundamentada |
Perguntas para Autoavaliação
- Minhas categorias refletem os dados brutos ou impus minha interpretação?
- As relações entre categorias são logicamente consistentes?
- A teoria explica o fenômeno de forma abrangente e original?
Essa estrutura detalhada garante rigor metodológico e clareza na aplicação da GT. Pratique com dados reais e ajuste o processo conforme necessário!
5. Vantagens e Críticas
✅ Vantagens:
- Flexibilidade para adaptação a diferentes contextos.
- Geração de teorias diretamente ligadas aos dados.
- Útil para explorar fenômenos pouco estudados.
❌ Críticas:
- Pode ser demorado e trabalhoso.
- Risco de subjetividade excessiva na interpretação.
- Dificuldade em alcançar saturação em amostras pequenas.
6. Exemplo Prático
Tema: “Como estudantes universitários lidam com o estresse durante o período de provas?”
- Coleta de dados: Entrevistas com 20 alunos.
- Codificação aberta: Surgem códigos como “noites sem dormir”, “apoio dos amigos”, “autocobrança”.
- Codificação axial:
- Fenômeno central: “Gerenciamento do estresse acadêmico”
- Estratégias: “Uso de técnicas de relaxamento”, “estudo em grupo”.
- Teoria emergente: “Estudantes adotam estratégias ativas e passivas para lidar com o estresse, influenciadas por redes de apoio e percepção de autoeficácia.”
Conclusão
A Teoria Fundamentada é uma metodologia poderosa para pesquisadores que desejam construir teorias a partir de dados empíricos, sem depender de estruturas prévias. Se você está começando, recomendo explorar as obras de Glaser & Strauss (1967), Strauss & Corbin (1990) e Charmaz (2006) para entender as diferentes abordagens.
E você, já utilizou a GT em sua pesquisa? Compartilhe suas experiências nos comentários!
📚 Leituras recomendadas:
- GLASER, B.; STRAUSS, A. The Discovery of Grounded Theory. 1967.
- STRAUSS, A.; CORBIN, J. Basics of Qualitative Research. 1990.
- CHARMAZ, K. Constructing Grounded Theory. 2006.
Espero que este guia tenha sido útil! Se tiver dúvidas, deixe nos comentários. 👇
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